Hoje é o Dia do Índio. Muitas escolas vão incentivar as crianças a pintar o rosto e se fantasiar, mas no geral a data não chama muita atenção da população. Uma grande parcela dos brasileiros ainda desconhece as contribuições indígenas à cultura brasileira e, infelizmente, associa os indígenas a pessoas incapazes, dessintonizadas da tecnologia e outras imagens preconceituosas. Por isso, quisemos abrir espaço para os nossos parceiros da COIAB (Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira) – com quem desenvolvemos ações de combate ao desmatamento e preservação da Amazônia – contarem o que o 19 de abril representa pra eles.
O texto abaixo foi escrito por Toya Manchineri, assessor político da COIAB e coordenador de Territórios e Recursos Naturais da Coordenação das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (COICA)
“O que é ser indígena no Brasil hoje, me perguntaram.
A resposta é simples: ser indígena no Brasil hoje é viver sob constante ataque.
Estamos sob ataque do vírus mais perigoso do último século. Está provado que a nossa imunidade é mais baixa, que as doenças respiratórias são especialmente letais para os parentes e que somos mais frágeis para doenças quem vem de fora dos ambientes aos quais estamos habituados. Então, o coronavírus representa uma ameaça séria, que vem levando nossos idosos e lideranças. No entanto, da maneira que podemos, estamos nos defendendo dessa investida.
Estamos sob ataque do governo. Poucas vezes na história do Brasil houve políticas autoritárias que demonstram tamanha disposição, vontade e energia de nos matar como agora. Querem nos apagar da história, literalmente. Diminuem orçamentos, exoneram servidores, mudam procedimentos de maneira aleatória, mantêm nossas reivindicações paradas nas gavetas. Ainda assim, das formas que nos são possíveis, estamos nos protegendo dessas agressões.
E estamos, há mais de cinco séculos, sob ataque do preconceito, da ignorância e da incompreensão. Há quem ainda tenha uma ideia ultrapassada do que é ser indígena. Não nos querem usando telefone celular, não nos querem nas cidades, não nos querem recebendo salários com carteira assinada e ocupando cargos públicos e nos parlamentos. Nossa defesa, aqui, é ser e estar.
Depois de tudo isso, você pergunta: “o que há para fazer?”
A resposta é óbvia. Como sempre, vamos resistir.
Porque é isso que nossos antepassados fizeram e é isso que nossos filhos e netos farão.
Contra o coronavírus, vamos resistir usando nossa medicina tradicional, nossa auto-organização, nossa autonomia, nossos territórios, nossas pajelanças e nosso contato com a natureza. Sabemos o que fazer e estamos fazendo – vacinando, criando barreiras sanitárias, promovendo isolamento, explicando e esclarecendo uns aos outros. Não estamos sós: temos ao nosso lado a ciência, os médicos sérios, pesquisadores verdadeiramente comprometidos. Nesta época de pandemia, é fundamental que toda sociedade se empenhe no combate à Covid-19, visto que a vitória contra a doença depende de todos nós.
Contra o governo, resistimos usando nosso poder de mobilização, a voz e a experiência acumuladas de nossas lideranças e autoridades. Cremos num estado democrático que acolha as nossas demandas, respeite as nossas diversidades e nos dê condições de exercer nossos direitos. Para isso, estamos nos mobilizando, fortalecendo nossas instituições, formando nossas lideranças. Sabemos que essa tempestade vai passar; e, quando passar, teremos parentes capazes e eficientes, que saberão ocupar os espaços e viabilizar as políticas que tanto desejamos.
Contra o preconceito e ignorância, investimos na educação – nossa e dos outros. O racismo estrutural não nos dá descanso, mas o caminhar do tempo é irreversível. Vamos ocupar espaços e este é um processo que não tem volta. Estamos na televisão, nos celulares, nos shoppings, nas universidades, nas academias. Nas redes sociais, nas fábricas, nas igrejas. No asfalto, na escola, nos clubes e nos condomínios.
Não é possível que em pleno século XXI sejamos vistos como pessoas incapazes de representar seus próprios interesses e lutar por suas próprias causas. Precisamos ter nossos direitos respeitados e participar diretamente das discussões que nos afetam. Não aceitamos mais uma visão a nosso respeito que seja retrógrada, tutelar, que pregue subserviência e integração. Somos e estamos – diversos, plurais, brasileiros.
Amparados pela Constituição Federal de 1988, queremos cada vez mais nossa autonomia e independência. A Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) prevê a consulta livre, prévia, informada e de boa fé. Fazemos questão de que essa norma seja respeitada – ou seja, que as medidas que impactem os povos indígenas contem com a nossa supervisão e acompanhamento desde o início.
Me perguntaram o que é ser indígena no Brasil hoje.
A resposta é simples: ser indígena no Brasil hoje é viver e resistir.”